domingo, fevereiro 19

XMIT


Estávamos no início da década de 90, em pleno cavaquismo(1).
Trabalhava então para o Estado através, tal como muitos outros, de um vínculo laboral precário (pré-aviso de despedimento de 24 horas).

Parte das minhas funções, equiparadas a técnico superior, passavam pela introdução de dados no terminal de um sistema informático (possivelmente fruto de um choque tecnológico da época).
Os dados constavam de 'processos', deviam ser inseridos cuidadosamente nos ecrâns correspondentes, tarefa que, após realizada com sucesso, permitia a aposição de um carimbo e uma rúbrica.
O problema era a realização da tarefa com sucesso, ecrân após ecrân.
Após a inserção de dados em cada ecrân, carregava-se numa tecla XMIT(2) para que fossem aceites na base de dados central.

Ora, carregar na tecla XMIT era sempre imprevisível.
Podia aparecer logo o ecrãn seguinte.
Podia demorar 5, 10, 15, 20, 30 minutos ou mais.
Estes minutos eram aguardados em frente ao terminal, com paciência, olhando para o ecrân à espera que algo acontecesse.
E o que podia acontecer, após longa espera, era surgir um erro qualquer que obrigava à reintrodução dos dados.
Era a esta rotina que, de tempos em tempos, o Serviço em causa alocava boa parte dos seus funcionários.
Devagar, de XMIT em XMIT, contando com a boa vontade do sistema informático.

Esta 'estória' podia ser uma daquelas questões acerca da produtividade do trabalho e da sua relação com a tecnologia, se ficasse por aqui.

Após muitos dias entediantes, a aguardar bovinamente novidades de um ecrân estático, e na ausência de qualquer outra tarefa que pudesse realizar em simultâneo, começei a aproveitar os intervalos pós-XMIT para ler qualquer coisa. O que também não me impedia de continuar a conversar com os meus colegas, igualmente confrontados com os mesmos XMIT.
Aqui começou o meu grande choque cultural com a função pública(3).
Estar perante um terminal de computador a ler era, pura e simplesmente, inconcebível.
O facto do ecrân estar, parado, bloqueado, paralisado, imóvel, obtuso, era irrelevante.
Quanto muito, tinha o dever de negar qualquer inoperância do sistema, ou continuar a carregar com fé na tecla XMIT, XMIT, XMIT.
A infeliz ideia de ler tornou-se um verdadeiro acto de insubordinação e provocou-me diversos problemas com a chefia (ou seja, fiquei 'queimado').
Tive de passar a ler clandestinamente, com a cumplicidade da sala e o objecto de leitura devidamente dissimulado, para que pudesse fazer-de-conta que algo estava a funcionar à minha frente no caso de alguma visita inoportuna (a chefia).


Ah. O objecto de criminosa leitura no local de trabalho era um tal 'The Economist'.



(1) Este 'cavaquismo' é aqui utilizado como adjectivo pelo seu significado sociológico: o ciclo desfazado do individualismo yuppie anglo-saxónico em Portugal.
O yuppismo foi fruto do impulso económico liberal dos anos 80 conhecido como Reaganomics, o que na prática significou a tomada das rédeas da economia norte-americana pela Escola de Chicago (supply-side drive economics). Reagan saiu em 1989 e os Republicanos perderam a Casa Branca em 1992 para Bill Clinton, que iniciou um fulgurante ciclo de crescimento económico, emprego e superávits orçamentais (algo que a Escola de Chicago não acreditava ser possível).
Na Europa, este desvario neo-liberal teve também o seu reflexo no Thacherismo, até 1990.

(2) «XMIT is an acronym for ... TransMIT»

(3) A função pública tem um conjunto de regras implícitas, próximas do universo de Dilbert. Na função pública, é socialmente aceite cumprir escrupulosamente o horário, com preferência a que este coincida o máximo possível com o das respectivas chefias. Qualquer aumento da produtividade (medido em relação ao desempenho de colegas com tarefas semelhantes) é premiado com a atribuição de mais trabalho. Qualquer iniciativa própria ou capacidade crítica é fortemente desprestigiante, não só perante a chefia como entre colegas. Até agora, a única medida conhecida de gestão por objectivos introduzida na função pública, com sucesso, foi a gestão do relógio de ponto. A antiguidade não só é um posto, como vale mais do que o resto do curriculum em qualquer concurso. E existe uma palavra tabu: responsabilização.

2 Comments:

At 20:15, Blogger Tonibler said...

Não entendo exactamente o porquê de iniciar a posta com o Cavaquismo. Hoje é exactamente a mesma merda e sempre foi assim. XMIT!

 
At 23:31, Blogger Mario Garcia said...

Quem viveu o que eu defini como cavaquismo sociológico, percebe o que quero dizer (aliás tento explicar essa nuance na nota 1).

É, necessariamente, uma questão pessoal e, portanto, subjectiva.

Por acaso, é uma espécie de clima que está a voltar (ao que não será indiferente os 8% de taxa de desemprego).

 

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