domingo, maio 1

Alésia? Não conheço Alésia.



"O 25 de Abril recusou-se (…) a inscrever no real os 48 anos de autoritarismo salazarista. Não houve julgamentos de PIDES nem de responsáveis do antigo regime. Pelo contrário, um imenso perdão recobriu com um véu a realidade repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos. Como se a exaltação repressiva da «Revolução» pudesse varrer, de uma penada, esse passado negro. Assim se obliterou das consciências e da vida a guerra colonial, as vexações, os crimes, a cultura do medo e da pequenez medíocre que o salazarismo engendrou. Mas não se constrói um «branco» (psíquico ou histórico), não se elimina o real e as forças que o produzem, sem que reapareçam aqui e ali os mesmos ou outros estigmas que testemunham o que se quis apagar e que insiste em permanecer."

José Gil in «Portugal Hoje – O Medo de Existir», p.16

Vem esta reflexão mesmo a propósito da já tão comentada lista de 3600 PIDEs e seus informadores, que a Maçonaria entregou à Torre do Tombo (e que será possível consultar daqui a cerca de 40 anos…).

Fazendo parte daquela geração que não viveu o 25 de Abril, mas que tem no seu imaginário todos os relatos, directos ou indirectos, dos que viveram na nossa longa ditadura, confesso que sempre me fez confusão a forma como os algozes de outrora se dissiparam no PREC, sem deixar qualquer rasto histórico.

Dificilmente consigo imaginar o que foi viver numa sociedade onde os telefonemas, as conversas de café, os comentários com os vizinhos, poderiam estar debaixo da vigilância de agentes e informadores da polícia política, à paisana, disfarçados, infiltrados nas nossas vidas, à espera de um deslize para acrescentar no ficheiro da PIDE, a bem da nação.

A imagem que tenho desses PIDEs é, felizmente, a daquele retrato tirado em pleno dia 25 de Abril de 1974, de um desses agentes, voltado para a parede, de bigode arrogante, mas de calças arreadas. Provavelmente perto da António Maria Cardoso, onde esta polícia política fez, cobardemente, as únicas vítimas mortais do 25 de Abril, disparando sobre a população, enquanto queimava os documentos que podia.

E dos tais informadores que, por 30 dinheiros, contribuíam para a devassa da privacidade dos seus conhecidos, vizinhos e mesmo dos amigos, não consigo sequer ter qualquer imagem em mente.

O que é certo é que, no meio do fervor da Revolução de Abril e do PREC, parece que todos estes senhores desapareceram e mais ninguém se lembrou deles. Passaram por entre as gotas da chuva, dissolveram-se.

Passados 31 anos surge a notícia da existência de uma lista com 3600 nomes de agentes e informadores da PIDE, esquecida pelas contingências históricas.
A notícia da existência de uma lista, como se alguém acreditasse que não tenha havido outras, na posse de sabe-se-lá-quem.

Mas, «como não se constrói um «branco» (psíquico ou histórico), não se elimina o real e as forças que o produzem, sem que reapareçam aqui e ali os mesmos ou outros estigmas que testemunham o que se quis apagar e que insiste em permanecer», o desconforto que esta notícia causou foi indisfarçável.

O legado histórico, quase genético, que herdámos desse meio século de regime ditatorial, é ainda hoje bem visível.
Visível no cizentismo, na «cultura do medo e da pequenez medíocre», na irresponsabilização colectiva duma sociedade que pede permanentemente desculpa (Desculpe, trazia-me um café? Desculpe, quanto custa? Por favor, se não se importa, trazia-me a continha? Obrigadinho. Desculpe lá.)

Visível em todos os traços que nos afastam daquela Europa de que fazemos parte mas que, mentalmente, ainda para lá continuamos a emigrar.

Não compreendo como foi possível limpar de tal forma o passado de tantas pessoas, mesmo em nome duma pacificação nacional.
Não compreendo como aqueles que os conheciam e que na mão deles sofreram, deixaram que tal acontecesse.
Não compreendo como se o crime fosse ter divulgado a existência desta lista, para a posteridade. Não compreendo como se tenta reescrever a história, dizendo que a polícia política não era repressiva, apenas servia os interesses de segurança do Estado. Salazar até já é referido por alguns como o melhor primeiro-ministro que Portugal já alguma vez teve (estarão estes senhores na famosa lista?).

Porém, talvez seja como diz o chefe da irredutível aldeia gaulesa:

«Alésia? Não conheço Alésia. Não sei onde fica.»


PS: Foi na batalha de Alésia que as legiões de Júlio César derrotaram as tribos gaulesas lideradas por Vercingetórix, consumando a ocupação romana da Gália.

Na BD de «Astérix – O Gaulês», os gauleses veteranos dessa batalha negam sempre Alésia, como se não estivessem lá estado, como se a batalha não tivesse acontecido e, consequentemente, como se os romanos não dominassem a Gália.

Terá sido devido a essa negação colectiva que hoje não se sabe qual o local exacto da batalha de Alésia.

(ver, por exemplo, «Astérix e o Escudo de Arverne»)